Por Dr. Élcio Eduardo de Paula Santana
O setor do entretenimento que demanda a presença de público poderá enfrentar uma situação inusitada após o “fim” do distanciamento físico devido à pandemia do Covid-19: o medo de o consumidor voltar a conviver de maneira próxima com o outro. Supondo que não tenha se descoberto uma vacina ou um medicamento que trate a doença provocada pelo novo Coronavírus, mas que a quantidade de pessoas infectadas consista em um número considerado controlável pelos agentes de saúde de tal modo que a socialização física possa ser liberada, as entidades provedoras de entretenimento poderão voltar a monetizar sobre os seus produtos no tocante à presença de público em seus espetáculos. Mas será que haverá público?
O consumo ou não de qualquer produto se faz pelo duelo de vetores favoráveis e desfavoráveis ao ato, aproximando-os ou afastando-os da ação; dá-se o nome de conflito motivacional a esse fato. Aliados à direção, as intensidades dos vetores também são imprescindíveis para determinar o resultado dessa equação. Se há uma situação em que o comportamento pode ter consequências potencialmente positivas e negativas, tem-se o que a literatura denomina um conflito do tipo atração-rejeição[i].
Então, é imperativo compreender se as necessidades supridas pelo indivíduo ao se tornar espectador de um ato de entretenimento, como, por exemplo, a vontade de socializar presencialmente, de obter variedade e de sanar a abstinência de apreciação dos produtos em questão são razões fortes o suficiente para superar, por exemplo, a necessidade financeira de se poupar para tempos economicamente difíceis que nos aguardam adiante/ou que já nos afligem, a menor probabilidade de se infectar com o vírus caso não se junte a aglomerações e a sensação de responsabilidade por potencialmente não repassar o vírus a outros com os quais o indivíduo conviva (estando o indivíduo assintomático). Esses três inibidores da motivação de consumo derivam da mesma essência, o medo, levado à sua manifestação no comportamento humano por caminhos diferentes entre si, mas que têm uma origem similar, o anseio de se autopreservar.
O medo é um indispensável componente na manutenção da sobrevivência humana, e é aviltado em situações em que nos confrontamos com situações mais óbvias de privação, dor e morte. Desta forma, ele é um inibidor poderoso de consumo, que pode fazer a pessoa se afastar da relação com um dado produto se a percepção desse medo for forte o suficiente para ela no que tange à sua relação com a prática de consumo. Sabe-se, inclusive, que o medo é um inibidor de promoção de ações coletivas, mesmo se outros direcionadores de comportamento estiverem presentes, como a raiva, por exemplo (Miller et al., 2009)[ii].
As comunicações, tanto vindas de organizações quanto de veículos jornalísticos ou de órgãos governamentais, promovendo a sensação de medo com o intuito de evitar certos tipos de comportamento encontram respaldo em Maddux e Rogers (1982)[iii]. Importa também postular que o medo se apresenta como um inibidor da satisfação das necessidades mais básicas do ser humano, as quais se posicionam em uma posição de ordem que antecede as necessidades mais “supérfluas” desse ser, de acordo com classificações clássicas, como a de Maslow (1970)[iv].
Então, o que fazer se você é o gestor de uma entidade esportiva, de uma rede de cinemas ou de uma promotora de shows musicais? Ações que já estão sendo tomadas no presente momento, em uma situação em que não se tem o efetivo controle tanto da contaminação quanto da cura da doença causada pelo Coronovírus, pode nos fornecer alguma luz para caminhos a trilhar. Salas de concertos musicais na Alemanha estão se apresentando para espectadores que são colocados a uma distância mínima de três assentos uns dos outros, o que leva a uma sensível diminuição da capacidade do auditório[v]. Tal fato leva a um aumento na sensação de segurança por parte do usuário, diminuindo o risco percebido pelo consumidor, risco esse de natureza física,[vi] o que o induz a consumir o produto, mas provoca uma diminuição na possibilidade de geração de receita por parte do provedor do negócio.
Outra ação é o “renascimento” dos cinemas estilo drive-in, muito populares na década de 50 nos Estados Unidos, que hoje se configura(va?) em uma indústria de nicho no mesmo país, e que é incipiente na maior parte do resto do mundo. A demanda pelo serviço aumentou consideravelmente em estabelecimentos dessa natureza já em funcionamento, e lugares que outrora servia a propósitos distintos, como estacionamentos, foram reconfigurados para receber esse tipo de atração[vii]. Com um viés de sobrevivência, experiência drive-in com um circo está sendo praticada no Brasil[viii].
Retoma-se então o texto de Maddux e Rogers (1982). As pessoas aceitam a proposição de evitar o comportamento proposto (se juntar às massas), induzidas pelo medo, se elas acreditam em uma alta probabilidade de ocorrência da ameaça e que a resposta sugerida em função do perigo iminente a ajuda a resolver o seu problema. Contudo, outra variável modera esse comportamento: a autoeficácia (Brandura, 1977)[ix], a qual aponta que o indivíduo adota o comportamento se ele(a) acredita que atingirá certo resultado e se ele(a) se sente mais ou menos eficaz se é visto(a) como capaz de adotar o comportamento sugerido.
Trazendo para o objeto de discussão aqui abordado, as pessoas deixam de participar de eventos com espectadores se acreditam realmente na existência e nos perigos trazidos pelo vírus da Covid-19, se crêem que o distanciamento físico é o melhor caminho para se proteger (e proteger a outros), e se o sujeito se sente capaz emocionalmente de se ausentar dos mencionados eventos, não sucumbindo a outras necessidades que sugerem a sua ida aos encontros sociais mencionados. Dentre os três comportamentos supracitados, os dois primeiros residem, eminentemente, na percepção da realidade que o sujeito constrói, a partir de suas crenças e da sua capacidade de processamento de informação – ou seja, ele compra ou não a ideia que lhe está sendo passada. Por sua vez, o terceiro comportamento diz respeito à resiliência do indivíduo em adotar certas posturas extraordinárias.
Caso a população efetivamente tenha comprado a ideia das medidas de distanciamento físico, com a devida resiliência, à época da propagação da Covid-19, o pós-coronavírus pode observar a manutenção desse comportamento, mais fortemente em um momento próximo ao fato e que gradualmente se declina o quão mais longe do fato o momento atual se encontra. Cabe ao gestor mudar esse hábito de consumo[x], incitando a nostalgia do comportamento pré-pandemia[xi] (a emoção de acompanhar a banda musical favorita in loco, por exemplo – como eu gostaria de assistir ao Pearl Jam, in loco, novamente!), suscitando as necessidades que podem ser satisfeitas com esse tipo de comportamento (a socialização, por exemplo, afinal, somos seres gregários!) e eliminado o discurso de medo anteriormente implementado, disseminando conhecimento sobre o novo status de saúde em que a localidade habitada pelo público-alvo se encontra.
Já se observam comportamentos de retorno às atividades regulares de espectadores em eventos de entretenimento, em países com o a Nova Zelândia e a Sérvia. Nesse último lugar, aconteceu o Adria Tour, torneio de tênis que reúne grandes nomes do esporte como o ídolo local e número 1 do mundo Novak Djockovic, que reuniu cerca de três mil pessoas tanto na sexta (12), quanto no sábado (13) e no domingo, 14 de maio. Os torcedores-consumidores dispensaram qualquer preocupação com distanciamento físico e com uso de máscaras, em sua maioria (a partir de uma visualização assistemática do autor deste texto)[xii]; tal ação demonstra a superação de um hábito anteriormente praticado, talvez mais rápido do que a teoria pudesse prever. O duelo de vetores aqui parece estar minimizando a força de um possível novo hábito adquirido durante o período de afastamento físico.
No caso observado na Nova Zelândia tais afirmações sobre o comportamento pós-coronavírus se tornam ainda mais evidentes, pois mais de 22 mil pessoas lotaram um estádio no dia 13 de junho para assistir a uma partida de Rugby. Abraços, high-fives, gritos e selfies em um estádio fechado![xiii] Até a data da partida, não havia mais registros de casos de coronavírus no país e todos os enfermos restantes já haviam se recuperado. Um fã presente no estádio, de acordo com reportagem do Boston Globe, apontou que ele sentia o temor de que houvesse alguém no estádio com o vírus, mas que ele estava disposto a se arriscar pelo fato de que ele, assim como todos, estavam “salivando” por estar presente em um evento esportivo, provocando uma melhora no humor da população como um todo.[xiv]
Todavia, não se pode afirmar que todo tipo de negócio e toda localidade voltara à atividade da maneira como se observou no Adria Tour de tênis e no rugby neozelandês. Setores em que os produtos substitutos podem ser mais competentes e/ou atrativos, como o caso do streaming de filmes quando comparado à experiência das salas de cinema, pode fazer com que os exibidores de filme presenciais tenham mais dificuldade em se reestabelecer, demandando, por exemplo, um apelo mais evidente e bem acabado para a socialização presencial, de maneira que isso impila os consumidores a retomarem a prática antiga de consumo[xv].
Outra barreira à participação de público pode ser a origem dos participantes do evento, tanto dos protagonistas quanto dos espectadores. Quem se proporia a ir a uma competição dos Jogos Olímpicos, em 2021, sabedores que as diversas localidades do globo tratam de maneira distinta a pandemia do Coronavírus? Aliás, os organizadores do evento estarão dispostos a aceitar estrangeiros em seus eventos?
Dúvidas, razões, opções, escolhas... qual será o state of love and trust (Pearl Jam novamente!) do público-alvo a ser atingido com relação ao negócio do setor de entretenimento em foco? Talvez seja preciso uma dose superior de amor à marca[xvi] para superar os temores da volta à vida “normal”? Ou estamos tão desesperados por novas experiências que o entretenimento com público será retomado normalmente? Como afirmou o Ministro dos Esportes da Nova Zelândia, Grant Robertson, “qualquer um que é um fã de esporte ao vivo ou mesmo de música ao vivo sabe que se você está lá, é totalmente diferente”.
[i] Tais teorias podem ser vistas no livro Comportamento do Consumidor, de Blackwell, Miniard e Engel (2005). [ii] Entenda toda a discussão sobre o medo e as ações coletivas em https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1368430209105046?casa_token=IuoRmmonOboAAAAA:1qm29FZhdjoSlLOoSDLDFGwhOoUF1_SmtBsZaRE5SFdVbxK7yrY81xTG_jziH8vZbzDW6n0eHLnmpg [iii] Veja o texto completo em https://www.researchgate.net/profile/James_Maddux/publication/222055931_Protection_Motivation_and_Self-Efficacy_A_Revised_Theory_of_Fear_Appeals_and_Attitude_Change/links/59e5ffa2a6fdcc1b1d970434/Protection-Motivation-and-Self-Efficacy-A-Revised-Theory-of-Fear-Appeals-and-Attitude-Change.pdf para se aprofundar no entendimento das relações da promoção do medo na resposta de quem recebe o estímulo. [iv] Entenda toda a teoria de Maslow em seu livro, disponível em http://s-f-walker.org.uk/pubsebooks/pdfs/Motivation_and_Personality-Maslow.pdf [v] Veja mais sobre o assunto em https://www.opopular.com.br/noticias/mundo/concertos-voltam-na-alemanha-mas-cinema-e-teatro-ainda-correm-risco-1.2055705 [vi] Entenda o conceito de risco percebido lendo o texto https://www.researchgate.net/profile/Vincent-Wayne_Mitchell/publication/235270293_Understanding_Consumers'_Behaviour_Can_Perceived_Risk_Theory_Help/links/586cb08a08ae8fce4919f175/Understanding-Consumers-Behaviour-Can-Perceived-Risk-Theory-Help.pdf [vii] Veja exemplos em https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-usa-drivein-idUSKBN22Z0GW [viii] Veja o exemplo em https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/06/em-formato-de-drive-in-circo-volta-a-receber-publico-em-porto-alegre-ckb43q27u005i015n3ejag436.html [ix] Vejo o texto completo em https://psycnet.apa.org/fulltext/1977-25733-001.pdf para compreender de maneira mais completa a Teoria da Autoeficácia. [x] Para o entendimento do hábito de consumo, acesse https://www.jstor.org/stable/pdf/1907409.pdf?casa_token=lYB7oMVKcVsAAAAA:Jxje0sLzW0ek4VtBd0RRG46Fl5mPIkQiXJ2--a8WAap7_RwGmQ2flcITSJ_OPUI2zRbvYBoIVyIwXuNqozAdXV91NGLRvtCel--KVpidUG3wO60PB0Gu [xi] Para entender um pouco mais sobre nostalgia, veja https://www.acrwebsite.org/volumes/7181/volumes/v18/NA-18 [xii] Veja em https://tenisbrasil.uol.com.br/noticias/77444/Djokovic-defende-Adria-Tour-das-criticas-recebidas/ e https://tenisbrasil.uol.com.br/noticias/77317/Torneio-de-Djokovic-nao-tem-mascara-nem-restricoes/ [xiii] Dados e fatos obtidos em https://www.smh.com.au/sport/rugby-union/returning-rugby-fans-in-nz-treated-to-thriller-at-packed-stadium-20200613-p552bx.html [xiv] As declarações mencionadas podem ser lidas neste texto: https://www.bostonglobe.com/2020/06/13/sports/rugby-fans-pack-stadium-virus-free-new-zealand/ [xv] A socialização, presencial, é uma das necessidades a serem supridas que apareceu com mais recorrência em estudo realizado por Reis e Santana (2016). Veja o resumo do estudo em http://www.anpad.org.br/eventos.php?cod_evento=2&cod_evento_edicao=81&cod_edicao_subsecao=1286&cod_edicao_trabalho=20631 [xvi] Para entender a relação do amor à marca com o consumo, especialmente no setor esportivo, veja a minha tese de doutorado: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/21407/Tese-Final_ElcioSantana.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Olá Rodolfo (Rodolfo Ferreira Maritan)!
Obrigado por participar das discussões no blog!
Certamente esse momento inusitado em nossa história nos faz repensar os modelos dos nossos negócios. Caso tudo volte à normalidade anteriormente conhecida, acredito que o modelo dominante continuará a ser o mais proeminente, tanto no esporte quanto na música, mas até lá a reinvenção é necessária. Pense nos casos das arenas que servem de espaço para competições esportivas e eventos musicais: além do caso do drive-in discutido no texto e já utilizado por uma entidade com o Allianz Parque, em São Paulo (tanto para cinema quanto para música), outras estruturas, como um estádio de baseball profissional na Flórida, foram além e passaram a disponibilizar o seu espaço para…
Olá Gustavo (Gustavo Forapani)!
Obrigado pelo comentário!
Sim, acredito que a situação no Brasil apresenta desafios adicionais, porque as entidades esportivas daqui carecem de uma conversão dos diversos pensamentos em um único caminho que vise o bem de todos os envolvidos. Basicamente estamos falando de um "salve-se quem puder"! Obviamente esse não é o caminho que apresenta um potencial maior de sucesso, pois se perde em poder de barganha, sinergia de ideias e de esforços. Você mencionou o caso do futebol... reflitamos um pouco sobre o caso dos esportes olímpicos: há alguma menção na mídia sobre essas atividades? Estamos a um ano (possivelmente dos jogos olímpicos) e não há qualquer tipo de discussão que ganhe o espaço público envolvendo os…
Oi Élcio, excelente reflexão!! A pandemia mostrou para muitos que os diversos tipos de entretenimento são essenciais na sociedade. No meu caso, sinto falta das competições esportivas e estou no grupo que sentiria medo de voltar a frequentar estes espaços mesmo com iniciativas de gestores(as) para reduzir essa aversão ao risco da doença. Vejo que ainda não é o momento ideal para o retorno das competições, acho que um bom estudo de caso será o retorno da temporada da NBA. O retorno precipitado pode mostrar que precisamos de outras experiências esportivas que não a física, mas não vejo que isso se concretizará rapidamente. Para outros setores como o musical, talvez seja o momento de se aproximar dos fãs em evento…
Ótima reflexão, prof. Élcio! Do jeito que a situação está, vejo que todos ainda estão bastante receosos na volta. Falando do Brasil, especificamente do futebol, noto que o receio também vai muito de encontro às posturas dos clubes que não conversam entre si e ao invés de propor soluções conjuntas e sensatas, pensam apenas em acelerar cada vez mais o processo em um cenário que está longe do ideal. Por aqui, acho que os torcedores/consumidores demorarão a se sentir confortáveis novamente. Serão momentos difíceis (para clubes e torcedores) que exigirão novas soluções! Abraço
Olá Eduardo, obrigado pelo comentário.
Sim, precisamos nos adaptar, definitivamente. Como está sendo evidenciado, caso não tenhamos a vacina contra o Covid-19, não podemos adotar o mesmo procedimento de outrora. Então, talvez tenhamos que explorar mais aprofundadamente as possibilidades de entretenimento remoto. Seria o grande momento para a realidade virtual se estabelecer totalmente como um potencializador da diversão no mundo do entretenimento? Essa vertente tecnológica, que desde os primórdios dos anos 90 permeia o imaginário popular, com o lançamento de suas versões mais rudimentares, não teria agora o espaço ideal para transportar os espectadores para dentro das pistas, estádio, ginásios, arenas e até mesmo salas de cinema?
Ainda no tocante à adaptabilidade, disponibilizar tecnologias mais elaboradas para potencializar a experiência…