Por Dr. Élcio Eduardo de Paula Santana
Tom Brady é possivelmente o maior jogador de futebol americano de todos os tempos e, provavelmente, o mais longevo esportista que atuou no topo de qualquer esporte. Quando da sua entrada na National Football League (NFL), Brady foi selecionado após outros 198 jogadores terem sido escolhidos pelos times componentes da liga. Esse processo de escolha, o draft, seleciona jogadores universitários para comporem as equipes profissionais, uma prática adotada pelas ligas americanas para que as suas equipes tenham um influxo de novos talentos. Uma referência na cultura popular que aborda esse procedimento de seleção é o filme “A grande escolha (Draft day)”, de 2014, estrelado por Kevin Costner.
Outro caso de referência no mesmo esporte é o do jogador Patrick Mahomes, que em 2020 assinou uma extensão de contrato com o Kansas City Chiefs que, potencialmente, pode ultrapassar a soma de meio bilhão de dólares em rendimentos. Esse jogador foi selecionado no draft de 2017 e é considerado um talento transcendental em sua posição. Ele não precisou de 199 chamadas até o seu nome ser anunciado, como no caso de Brady, mas nove outros jogadores foram selecionados antes que ele.
Esse processo de draft é algo que demanda uma série de considerações por parte dos decisores das equipes que farão as escolhas. Várias análises quantitativas e qualitativas são utilizadas para se fazer tal avaliação. O “NFL Scout Combine”, por exemplo, é um “evento de quatro dias (...) que permite aos olheiros da NFL avaliar (...) os jogadores universitários em uma variedade de critérios médicos, mentais e físicos”[i] . Medições da envergadura do atleta, do seu tempo em uma corrida de 40 jardas, avaliação das situações do corpo do esportista em locais em que previamente ele apresentou contusões, e entrevistas com o staff técnico das equipes etc. são elementos utilizados pelas equipes avaliadores nesse evento. Procedimento semelhantes, em outra liga de outro esporte, no basquete da NBA, é apresentado também na sétima arte por meio do filme “Arremessando alto”, de 2022, o qual tem Adam Sandler como seu protagonista principal.
Essa combinação de variáveis auxilia os decisores das equipes quanto às suas escolhas para formarem os seus elencos. Quando da ocorrência do NFL Draft de 2005, por exemplo, o principal prospecto da classe de jogadores universitários daquele ano, Aaron Rodgers, não foi selecionado pelo time que detinha o direito de ser o primeiro a escolher, o San Francisco 49ers, pelo fato de o jogador ter apresentado um traço comportamental que não condizia com os preceitos da organização – ele foi avaliado como tendo uma postura muito soberba[ii]. Tal escolha, em função da performance apresentada por Rodgers em campo e pelo atleta então escolhido pelos 49ers, Alex Smith, demonstrou ter sido um equívoco, o que atesta a complexidade da execução dessa ação.
A definição de critérios de análise adequados é tão importante quanto a correta aplicação desses elementos na avaliação dos atletas, e tais quesitos podem e devem ser recorrentemente (re)pensados. Por exemplo, o NFL Draft Combine não utiliza, desde 2022, o teste de perspicácia mental denominado “Wonderlic Test”, pelo fato de a ferramenta não apresentar correlação positiva com a performance do atleta em campo, dentre outras razões.[iii] Trabalho orientado por mim e executado por Gleyson Menandro, no curso de Gestão da Informação, da Universidade Federal de Uberlândia, apontou que não há correlação entre diversos indicadores obtidos no NFL Draft Combine e o desempenho dos quaterbacks na NFL. O mesmo trabalho também observou que não correlação no desempenho dos jogadores dessa posição em sua carreira profissional e as diversas métricas comumente apresentadas nas transmissões durante à época de suas respectivas jornadas como atletas universitários, como, por exemplo, jardas lançadas, touchdowns obtidos etc.[iv]
Os emblemáticos casos de insucesso são contrapostos com escolhas que recompensaram as equipes, sejam elas feitas pelos sofisticados métodos que envolve a análise de múltiplas variáveis, sejam elas feitas de maneira mais trivial. Um exemplo do segundo formato é apresentado na sequência.
No programa Boleiragem, do SporTV, em seu episódio de número 142, o ex-jogador e hoje comentarista de futebol Caio Ribeiro compartilhou uma história atinente ao convidado da atração, o também ex-jogador de futebol, Elano. Segundo Caio, a decisão de se contratar o mencionado jogador foi tomada após uma única observação, assistemática, de um jogo de futebol de times da categoria de base. A observação foi feita pelo então dirigente do time Santos Futebol Clube, auxiliado pelo apontamento de qualidade do jogador feita por Caio. Elano se tornou um jogador titular da seleção brasileira em uma Copa do Mundo.
Escolhas bem-sucedidas nesses processos de seleção obviamente acontecem, porque sempre haverá grandes atletas, esportistas que entram para o panteão dos ícones do esporte (necessariamente alguém sobrepujará outro no meio esportivo). Desta forma, a ideia que deve predominar nas organizações esportivas é a de tentar evitar os erros de escolha, que até o momento não se mostraram factíveis de serem recorrentemente evitados, até mesmo porque há uma busca concomitante de acertos entre todos os concorrentes, tornando, assim, uma escolha feita por um naturalmente inviável para o outro.
Voltando aos casos inicialmente apresentados de Tom Brady e Patrick Mahomes, pontua-se que os procedimentos adotados para a contratação de atletas eram bem mais limitados em 2000 que aqueles adotados no ano de 2017. Durante esse período, a aplicação de premissas de análises de dados na avaliação de atletas, não somente para a contratação, mas também para o seu desenvolvimento e para a seleção de esportistas que formam as equipes que atuam em momentos específicos de uma contenda, ganhou notoriedade e se popularizou nas esferas mais sofisticadas, gerencialmente, da competição esportiva.
Tais premissas, amplamente englobadas em um “guarda-chuva” denominado Sports Analytics, foram apresentadas ao grande público por meio do filme “O homem que mudou o jogo”, em que Brad Pitt interpreta Billy Beane, o gerente-geral do time de beisebol Oakland Athletics, da MLB (Major League Baseball). A película, baseda no livro escrito por Michael Lewis denominado “Moneyball: O homem que mudou o jogo”, descreve as práticas gerenciais de Beane, as quais levaram uma equipe com menos recursos que a concorrência a atingir resultados mais satisfatórios que seus pares, em função da análise dos dados jogo, como o fato de que ceder “walks” é uma ação a ser tomada mais recorrentemente no processo de arremesso, de maneira que assim se evita que a bola entre em jogo em certas situações em que o time que está rebatendo tem mais possibilidades de conseguir acertar a bola e assim criar uma chance de anotar pontos[v].
Uma apreciação mais extensa das premissas das análises de dados aplicados ao esporte pode ser feita no artigo “Sports analytics — Evaluation of basketball players and team performance”, de Sarlis e Tjortjis (2020), trabalho em que os autores revisam as métricas de análise quantitativo de jogadores no basquete e propõe modelos de análise[vi].
Pode-se observar, inclusive, a existência de cursos sobre a ciência de se analisar dados em prol de um melhor desempenho esportivo, como “Sabermetrics 101: Introduction to Baseball Analytics”, ofertado pela Boston University pela plataforma edX[vii].
Voltando à obra “Moneyball”, um dos artífices daquela “revolução”, juntamente com Billy Beane, foi o seu assistente Paul dePodesta, um graduado em Economia, por Harvard. Notem que apesar de seu histórico como jogador universitário de futebol americano e beisebol, o elemento distintivo que alavancou a sua carreira foi a sua capacidade de analisar dados de maneira aplicada oriunda da econometria[viii].
Após a sua atuação por quase 20 anos no beisebol, DePodesta passou a atuar como decisor do Cleveland Browns, uma franquia da NFL, que não por outra razão o contratou: seguidas falhas na formação da equipe, notoriamente na escolha do quarterback da equipe, como aconteceu na famosa escolha de Johnny Manziel no draft de 2014, o então favorito dos tradicionais avaliadores de talento, ao invés de Teddy Bridgewater, o predileto dos analistas quantitativos. Manziel foi um fracasso nos Browns, enquanto Bridgewater teve uma carreira sólida em outras equipes, apesar de ter sido limitada por uma significativa lesão[ix]. Após a chegada de DePodesta, os Browns conseguiram voltar a vencer nos playoffs e por um único jogo não chegaram ao pináculo do futebol americano, o Super Bowl, na temporada 2020-21.
Mesmo com sólidas exemplificações de sucesso, movimentos contrários à aplicação do sports analytics na contratação de esportistas e na análise das dinâmicas dos jogos, ainda são visíveis, seja (a) por filosofia de vida na abordagem a como o esporte deve ser, (b) por ignorância quanto às premissas de matemática e estatística aplicada ao esporte, e/ou (c) por petulância do tomador de decisão que se considera autossuficiente para resolver todas as questões gerenciais. Algumas dessas considerações são abordadas no artigo “Sport Isn’t Sacred and Analytics Isn’t New: Challenging Common Notions About Sports Analytics”, de Morgan e Magnusen (2022)[x]. Essa contraposição entre o tradicional e o analítico, pendendo romanticamente para o lado do tradicionalismo, é apresentado no filme “Curvas da vida”, protagonizado por Clint Eastwood.
Apesar dessas disposições em contrário, a prática de se considerar as questões matemáticas e estatísticas na análise de esportistas e equipes se dissemina, como evidência o artigo “How the ‘Idiots Who Believe’ in the Analytics Movement Have Forever Changed Basketball”, de Bechtold (2021)[xi], assim como a existência de eventos de alto impacto que discute o tema, como MIT Sports Analytic Conference[xii], conduzido pela prestigiosa instituição universitária Massachussets Institute of Technology.
Posto isso, a parir do momento em que o Sports Analytics deixa de ser uma novidade e passa a ser a prática dominante, novas fronteiras precisam ser descobertas. Em função dessa última argumentação, apresenta-se o caso do Miami Heat, uma equipe de basquetebol da NBA (National Basketball Association). Algo que se vem incensando nos últimos tempos é o fato de essa equipe fazer com que jogadores aparentemente inexpressivos se tornem atletas relevantes no cenário competitivo. O elenco atual do Heat, finalista da temporada 2022-2023 da NBA, possui sete jogadores que não foram selecionados em procedimentos do NBA Draft, o que a princípio aponta que esses são esportistas que não têm a qualidade necessária para fazer parte da liga. Contudo, outro procedimento que segue a seleção dos jogadores ganha notoriedade nesta organização: o desenvolvimento desses recursos humanos.
Segundo um desses casos de atletas desenvolvidos pelo Heat, o atleta Max Struss, Miami quer trabalhar com esses “renegados”, o time os respeita e tem o anseio de desenvolver esses basquetebolistas. O treinador da equipe, Erick Spoelstra, reforça esse preceito adicionando que se faz essencial a compreensão dos veteranos já estabelecidos na equipe de que esse é o caminho que a organização segue, sendo essa forma de agir algo imbricado em uma filosofia mais grandiosa, a chamada “Heat Culture”[xiii].
Segundo Udonis Haslem, o jogador do Miami Heat que até o final da temporada 2022-23 era o atleta que há mais tempo fazia parte da equipe (ele acaba de se aposentar após completar 20 anos de carreira), essa cultura da equipe tem alguns mantras: disciplina, prestação de contas, ética de trabalho e apreciação do sucesso alheio[xiv]. Como a cultura é manifestada por meio de mitos e ritos, essa estória deve ser embasada por uma série de rituais que se transformam em filosofia existencial da equipe, como afirma o treinador Spoelstra. Desta forma, a ação de sucesso na construção do elenco do Heat não se trata somente de um entendimento aprofundado do tratamento de dados, que é o mantra do gerenciamento contemporâneo, mas de uma condução adequada de um processo que acabou se imbricando fortemente nas entranhas da organização pelo direcionamento e tenacidade de seus líderes.
Complexidade e possibilidades caminham juntos nesse processo de recrutamento, seleção e desenvolvimento de jogadores, os ativos mais decisivos em uma organização esportiva. Estar atento aos movimentos que concernem tais práticas é uma condição si ne qua non para se ter uma chance de se competir com os concorrentes e assim minimizar as chances de insucesso.
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[i] https://operations.nfl.com/journey-to-the-nfl/the-next-generation-of-nfl-stars/nfl-scouting-combine/#:~:text=Also%20known%20as%20the%20NFL,medical%2C%20mental%20and%20physical%20criteria
[ii] https://www.nbcsports.com/bayarea/49ers/nolan-49ers-chose-safe-smith-over-cocky-arrogant-rodgers
[iii] https://www.profootballnetwork.com/why-did-the-nfl-get-rid-of-the-wonderlic-test/
[iv] https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/30813
[v] https://sports.yahoo.com/10-degrees-moneyball-caused-largest-changes-baseball-since-integration-050601410.html
[vi] https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0306437920300557
[vii] https://www.edx.org/course/sabermetrics-101-introduction-to-baseball-analytic
[viii]https://en.wikipedia.org/wiki/Paul_DePodesta
[ix] https://www.washingtonpost.com/news/early-lead/wp/2016/03/11/the-browns-100000-study-told-them-to-take-teddy-bridgewater-they-took-johnny-manziel/
[x] https://trace.tennessee.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1515&context=jasm
[xi] https://theanalyst.com/2021/04/how-advanced-analytics-have-changed-basketball/
[xii] https://www.sloansportsconference.com/
[xiii]https://www.espn.com/nba/story/_/id/33764274/the-miami-heat-mastered-winning-undrafted-talent-organizational-philosophy
[xiv] https://www.gq.com/story/udonis-haslem-miami-heat-culture
De: Guilherme Mange
Muito interessante esse texto, Élcio. Podemos ver o quanto esse processo de recrutamento e seleção é complexo e também fundamental para escolhas mais assertivas dentro do mundo esportivo.
Excelente texto! Muito atual! Parabéns professor Élcio!!!!
Ótimo texto, professor! Concordo que é cada vez mais importante enxergarmos seleção e desenvolvimento de atletas como aspectos indissociáveis. Principalmente, quando analisamos as situações de clubes com menor capacidade financeira, onde a assertividade na montagem do elenco precisa ser alta.
E os drafts são um espetáculo à parte!
Excelente texto e reflexão, Élcio!