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Match FAGEN

Sobre a “sacralização” de marcas esportivas: o caso Olimpíadas


Por Dr. Élcio Eduardo de Paula Santana


A marca Olimpíadas, que envolve o nome e a logomarca (os arcos olímpicos), é um exemplo crasso de marca “sacralizada”. O mencionado predicado refere-se a uma marca que engloba elementos de consumo que se destacam dos bens e serviços que são consumidos sem qualquer tipo de reverência e respeito[i]. Convém ressaltar que a “sacralização” da marca não se relaciona com o viés religioso, apesar de que o sagrado, literalmente falando, também pode envergar marcas “sagradas”.


O fato de uma marca ser considerada sagrada (sem aspas, doravante – acho que vocês já entenderam o conceito, certo?!) é uma condição adquirida pela própria marca, a partir de uma percepção do grupo de consumidores que se relacionam com ela, reagindo a ações que ela emana ou que são providas por outro grupo de interessados na marca. Desta forma, por que a marca Olimpíadas é considerada sagrada do ponto de vista mercadológico? Quais foram as ações impetradas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) que levaram à sacralização da marca Olimpíadas? Qual é impacto dessa sacralização na comercialização de produtos que levam a chancela da marca (como os Jogos Olímpicos de verão e inverno, as Paralimpíadas, e o merchandise que leva a logomarca olímpica e os símbolos relacionados aos jogos)?


A marca Olimpíadas é considerada sagrada porque a percepção dos fãs de esporte sobre ela a difere das demais marcas esportivas. Os espectadores olímpicos consideram os produtos que derivam dessa marca como únicos, especiais, e por esse fato devotam um comportamento distinto aos bens e serviços chancelados por essa marca.


O fato de se criar uma aura mítica em torno dos Jogos Olímpicos, recuperando histórias milenares da Grécia antiga, impregnando valores de desempenho físico excepcional (“Citius, Altius e Fortius”, isto é, “mais rápido, mais alto e mais forte”, o histórico e original lema olímpico)[ii], e de comunhão dos povos do planeta Terra auxiliam sobremaneira a sacralização da marca (o maior símbolo gráfico olímpico, os arcos olímpicos, enfatizam essa representação, de maneira que cada arco representa um continente do globo)[iii].


A ritualização também se manifesta de forma intensa para promover a referida sacralização, por meio da trajetória do fogo olímpico ao redor do mundo, do acendimento da pira olímpica, da concessão de medalhas aos esportistas que alcançam os três primeiros lugares, e da realização de cada um dos principais produtos do COI (os Jogos de verão, de inverno e das Paralimpíadas) a cada quatro anos, inequivocamente, a não ser em casos de pandemia e guerras mundiais.


Todos esses elementos que levam à sacralização da marca são vetores positivos que colidem e demonstram força para combater vetores negativos, como suspeitas de escândalos para escolhas de sedes[iv], dificuldades para se encontrar lugares para sediar os jogos[v][vi], trapaças de atletas[vii] e de comitês olímpicos[viii].


O impacto dessa sacralização se observa na (1) obsessão dos atletas de diversos esportes para participar das Olimpíadas, no (2) acompanhamento dos fãs ao redor do mundo com relação aos Jogos quando do seu acontecimento, no (3) investimento de outras marcas comerciais ao patrocinar o evento e as entidades ligadas ao movimento olímpico, e no (4) valor da marca Olimpíadas. Atentemo-nos aos três últimos impactos, que se relacionam com o propósito deste fórum de discussão.


Observa-se um intenso acompanhamento dos jogos, por parte dos fãs, que acontece tanto de forma remota[ix], quanto pessoalmente[x], assumindo alguns formatos que podem ser caracterizados como fanáticos[xi][xii], em ambos as modalidades de acompanhamento.


O patrocínio nos Jogos Olímpicos apresenta características peculiares. A exposição da marca nas instalações esportivas não acontece nos Jogos Olímpicos, que mantém imaculada as laterais das suas arenas, apresentando apenas menções ao evento propriamente dito. Tal ação se configura em mais um ritual que reforça a sacralização da marca, pelo fato de não se “sujar” o seu produto com uma associação direta com uma marca eminentemente comercial. Mesmo assim, o COI obteve mais de US$ 3 bilhões de receita de patrocínio com a edição Tóquio 2020, recorde que superou em duas vezes a meta estabelecida e em três vezes aquilo que foi angariado nos jogos Rio 2016.[xiii] Apesar dessa limitação, existem diversas formas de se obter retorno com esse tipo de investimento, como por meio da possibilidade de associação de imagem da marca patrocinadora com a entidade patrocinada, e da utilização do nome e da logomarca dos Jogos Olímpicos em anúncios, produtos, promoções etc.[xiv]


A marca Olimpíadas é avaliada de maneira separada ao se analisar os seus dois principais produtos. Os Jogos Olímpicos de Verão e os Jogos Olímpicos de Inverno, valiam, respectivamente, em 2019, 375 e 150 milhões de dólares, posicionando-se assim em segundo e em nono na lista dos eventos esportivos mais valorizados do planeta[xv].


Esses três elementos que se configuram no impacto da sacralização levam os esportes que fazem parte do programa olímpico a um patamar distinto de apreciação quando associados às Olimpíadas, assim como conferem a eles uma chancela distinta quando comparados a esportes similares que não são praticados nos Jogos Olímpicos. Vamos analisar os números do Google Trends, que apresenta um índice que aponta a quantidade relativa de buscas que um termo específico obteve em determinado período e região, obtendo o índice 100 (cem) quando se registrou o ápice de buscas na plataforma citada, e o índice 0 (zero) no momento em que não houve busca alguma (a variação que compreende do 0 ao 100 aponta um menor número de buscas quanto mais perto do 0, e um maior número de buscas quanto mais perto de 100, índice apontado de maneira relativa sempre em relação ao momento em que se obteve o número absoluto de buscas que gerou o 100).


Vejamos o exemplo do atletismo. Talvez um dos três esportes mais “olímpicos” de toda a gama que se encontra no programa dos jogos (juntamente à natação e à ginástica artística), tais modalidades possuem vida própria em momentos outros que o das Olimpíadas, mas as competições disputadas fora dos Jogos possuem um grau de repercussão claramente menor. Atentemo-nos ao caso do esportista mias icônico do atletismo neste milênio, o jamaicano Usain Bolt. Os resultados do Google Trends[xvi] apontam claros picos de busca à época dos três Jogos Olímpicos que ele disputou, em 2008, 2012 e 2016, com os respectivos índices de 43, 79 e 100. Antes dos jogos de 2008, o maior índice obtido por Bolt havia sido o de número 2, cerca de dois meses antes das Olimpíadas, possivelmente em função de ele ter batido o recorde mundial dos 100 metros rasos pela primeira vez no último dia de maio de 2008. É importante notar que ele já era um personagem conhecido no mundo do atletismo, pois havia obtido a então segunda melhor marca mundial nos 100 metros rasos, em 2008, e em 2007 ele já havia competido no Campeonato Mundial de Atletismo (o segundo evento mais prestigiado do esporte), tendo alcançado duas medalhas de prata, nos 200 metros livre e no revezamento 4x100 metros.


Em datas que se localizam posteriormente aos Jogos Olímpicos de 2008, até os dias atuais, em apenas cinco meses o atleta obteve índice maior ou igual a 13, quando não computados os meses em que ocorreram as Olimpíadas subsequentes que ele estava disputando. Salienta-se que um desses cinco meses foi o de agosto de 2021, momento em que ocorreu o evento Tóquio 2020; ou seja, mesmo estando fora da disputa dos Jogos Olímpicos, o fato de a marca Usain Bolt ter encorpado e ganhado a notoriedade mundial em função dos mencionados jogos faz com que a associação seja ainda muito forte e permita assim que o atleta tenha uma nova propulsão em sua notoriedade, quando do acontecimento periódico desse evento.


Executando a mesma análise em atletas de outros esportes, o padrão de destaque para as Olimpíadas ainda acontece. Em alguns esportes, como a canoagem, que quase nenhuma repercussão possui fora do período em que acontecem as Olimpíadas, essa evidência se torna ainda mais evidente. Ao se analisar o resultado do Google Trends para o esportista Isaquias Queiroz, brasileiro medalhista olímpico de ouro em Tóquio 2020, que também é detentor de duas outras medalhas nos jogos Rio 2016, verifica-se que os picos de busca acontecem exatamente nos meses em que ocorreram ambos os Jogos, com os índices de número 100 e 56, respectivamente. Fora o período de ocorrência dos jogos, houve apenas cinco meses em que o índice foi maior do que 1, todos eles observados após o destaque obtido nos Jogos de 2016 (os índices obtidos foram 4, 2, 3, 11, 3, sendo que o índice 11 foi obtido no mês anterior aos jogos ocorridos do ano corrente)[xvii].


Uma análise interessante repousa sobre o tênis, um esporte que possui uma estrutura totalmente independente dos Jogos Olímpicos para ter evidência midiática, e que tem a sua competição dentro dos jogos considerada não tão glamourosa quanto às demais que compõem o seu calendário. Ao analisar o tenista bicampeão olímpico, o escocês Andy Murray, observamos que ele atinge o índice 100 no mês da conquista de sua segunda medalha de ouro, nos jogos Rio 2016. Esse fato é marcante porque o britânico é três vezes campeão de torneios que compõem o Grand Slam, o conjunto dos torneios mais relevantes do tênis mundial, incluindo dois campeonatos em Wimbledon, que é o mais tradicional dentre todas as disputas do esporte e é considerado o santo graal em sua terra natal. Ou seja, há inúmeros outros motivos para as Olimpíadas não ser tão impactante na carreira de Sir Andy Murray, mas, mesmo quando comparado a todos esses feitos, os Jogos Olímpicos apresentam uma ascensão sobre o público que acompanha o jogador e o esporte.


Diante de tais evidências, não é de se estranhar que um esporte outrora considerado “marginal”[xviii], como o skate, tenha buscado se “contaminar” pelo poder “sacro” dos Jogos Olímpicos, buscando, assim, uma legitimação no mainstream, por mais controverso que isso possa ser em um meio que sempre buscou ser um artífice da contracultura[xix]. Parece que os ganhos advindos da contaminação feita pela sagrada marca olímpica superam as questões de ordem ideológica.


Contudo, como todo ente que ganha uma personalidade própria, a marca possui uma natureza mutável, e a sua qualidade de ser sagrada precisa ser constantemente trabalhada para se manter assim, ainda mais em um mundo assoberbado de ofertas no setor do entretenimento, e que não possui as mesmas compreensões de limites territoriais como elementos determinantes da construção da identidade de um indivíduo, como acontecia em tempos anteriores.


Aguardo os comentários para prosseguirmos a discussão sobre a sacralidade da marca Olimpíadas, assim como outras perspectivas relacionadas ao tema marcas sagradas no mundo do esporte e entretenimento.


* Siga a nossa conta no Twitter em @match_fagen para se atualizar sobre as ações do MATCH.


** Acesse a página do MATCH para conhecer todos os trabalhos desenvolvidos pelo núcleo de estudos: https://matchfagen.wixsite.com/match/

[i] A discussão sobre o consumo sagrado e o consumo profano podem ser encontradas nas páginas 578 a 582 da seguinte obra: SOLOMON, M. R. O comportamento do consumidor: comprando, possuindo e sendo. 9 ed. Porto Alegre: Bookman, 2011. [ii] Veja texto sobre o assunto em https://r.search.yahoo.com/_ylt=AwrE18thSENhtvMAgl_z6Qt.;_ylu=Y29sbwNiZjEEcG9zAzIEdnRpZAMEc2VjA3Ny/RV=2/RE=1631828193/RO=10/RU=https%3a%2f%2folympics.com%2fioc%2folympic-motto/RK=2/RS=_TrRSK0sWPu.BuIL0xjE72o1ztw- [iii] Veja texto que versa sobre o significado dos arcos olímpicos em https://www.terra.com.br/esportes/jogos-olimpicos/entenda-qual-o-significado-dos-arcos-olimpicos,5daa5902369b482c2328bdf0271bfbe6axiorupn.html [iv] Veja exemplo em http://www.espn.com.br/noticia/724586_midia-internacional-repercute-corrupcao-na-rio-2016-e-compra-de-votos-que-alcanca-nuzman [v] Veja exemplo em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/01/140118_estocolmo_desiste_candidatura_olimpiada_inverno_cv_ [vi] Veja debate em https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/olimpiada/noticia/2021/08/depois-de-toquio-2020-saiba-o-que-esperar-das-proximas-olimpiadas-cksfdcgfc000r013bultzaof2.html [vii] Veja exemplo em https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2018/09/historico-doping-de-ben-johnson-que-mudou-o-esporte-completa-30-anos.shtml [viii] Veja exemplo em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50668876 [ix] Veja como a Rede Globo conseguiu altos índices de audiência com os jogos Tóquio 2020 em https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/audiencias/com-finais-olimpicas-globo-bate-recorde-tem-melhor-sabado-do-ano-62975 [x] Veja a grande procura de ingressos para as Olimpíadas Rio 2016: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-05/comite-rio-2016-faz-balanco-da-venda-de-ingressos-para-olimpiada-e-apresenta [xi] Veja um exemplo de um fanático em https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/07/21/mineiro-que-gastou-r-27-mil-para-ver-olimpiadas-de-perto-tera-que-assistir-aos-jogos-no-sofa-de-casa.ghtml [xii] Veja a classificação de fãs de acordo com a intensidade de acompanhamento no texto de HUNT, Kenneth A.; BRISTOL, Terry; BASHAW, R. Edward. A conceptual approach to classifying sports fans. Journal of services marketing, 1999. Este texto pode ser lido em https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/08876049910298720/full/pdf?casa_token=BnF4sGgJOhUAAAAA:l9JAsne_qyt3z2rAwi-RQGBrHGSWDU-6--kr9hhUeA9lYUkfQd-8PSeO_aB49NG1mGBxiWcacRtGHYsQC1VVshC66wBA7u9JP5N1uvvXIfJE-WaeSjMRTA [xiii] Entenda o propósito dessa ação e veja os números citados lendo o texto em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/07/30/por-que-nao-existem-placas-de-publicidade-nas-olimpiadas.htm [xiv] Veja exemplos de ações de patrocínio em https://www.istoedinheiro.com.br/jogos-olimpicos-um-oasis-para-a-publicidade-e-para-o-marketing/ [xv] Veja a lista completa das marcas esportivas em https://www.forbes.com/sites/mikeozanian/2019/10/16/the-forbes-fab-40-puma-debuts-on-2019-list-of-the-worlds-most-valuable-sports-brands/?sh=5095caf4d356 [xvi] Veja os resultados sobre Usain Bolt em https://trends.google.com.br/trends/explore?date=all&q=%2Fm%2F0cm3j1 [xvii] Veja os resultados sobre Isaquias Queiroz em https://trends.google.com.br/trends/explore?date=all&geo=BR&q=%2Fg%2F11bbxmm8qh [xviii] Um artigo que versa sobre o passado “marginal” do skate pode ser lido em https://rollingstone.uol.com.br/noticia/skate-no-brasil-da-marginalidade-medalhas-olimpicas/ [xix] Leia artigo interessante que discute essa suposta dualidade em https://theconversation.com/from-outlier-to-olympic-sport-how-skateboarding-made-it-to-the-tokyo-games-165152

41 visualizações2 comentários

2件のコメント


guibm77
2023年6月30日

De: Guilherme Mange

Texto fundamental!

Podemos ver o quanto os Jogos Olímpicos promove modalidades esportivas e trazem mais representatividade para os atletas devido ao poder de sacralização que a marca possui.

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Match FAGEN
2023年7月04日
返信先

Definitivamente, Guilherme. Alguns esportes aproveitam esse "momentum" e continua em evidência, como o vôlei. Outros não conseguem se organizar para que isso aconteça... seria um problema inerente ao esporte (o produto central, propriamente dito), que não tem em sua formatação algo que agrade o consumidor, ou um problema de "embalagem", ou seja, uma apresentação mais adequada do produto que está sendo trabalhado pelas entidades que os gerem?

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