Por Dra. Giselle Helena Tavares
Neste post falaremos um pouco sobre diversidade e gestão do esporte. Inicialmente temos que nos perguntar: É necessária a atenção da gestão do esporte para esse tema? O intuito deste texto, para além de uma análise das demandas sociais, pretende apresentar a perspectiva científica relacionada a esse tema.
Neste sentido, torna-se importante compreender o esporte como um fenômeno social, que sofre influências da cultura, da sociedade, da política e da economia. Assim, este fenômeno se caracteriza como uma das maiores manifestações da humanidade, devendo ser compreendido a partir do desenvolvimento da própria humanidade. A partir desta compreensão, torna-se interessante refletirmos sobre: como pensamos o esporte? Para quem pensamos o esporte? Quem pensa o esporte?
Tentando responder “como” pensamos o esporte, evidenciamos uma questão paradoxal entre o esporte tradicional versus as mudanças sociais e históricas exemplificadas, por exemplo, pelo fato de as mulheres passarem 40 anos proibidas por lei de jogar futebol e outros esportes que exigem força no Brasil, com o justificativa de “irem contra a natureza feminina”. Para além das questões de gênero, outros pontos relevantes versam sobre as questões de diversidade sexual.
Para autores como Goellner et al. (2013) e Cunningham (2019) vivemos em um momento de desconstrução de padrões na sociedade, considerando que, as práticas, discursos sexistas e heteronormativos são enraizados e dialogam com os signos sociais construídos histórico-culturalmente. Logo, se o padrão discursivo social é: branco, viril, heterossexual, cristão, as práticas sociais – como o esporte – seguirão inevitavelmente estes mesmos mecanismos.
Nesta perspectiva, a (recente) produção científica, predominantemente realizada em âmbito internacional, destaca alguns pontos importantes para subsidiar a discussão de “como pensamos” e como “deveríamos pensar” o esporte moderno.
Mesmo em países como Austrália, que por um lado estão avançados em termos legais (Human Rights and Equal Opportunity Commission Annual Report 2006—2007), no geral, há uma discrepância entre objetivos políticos do governo e das organizações esportivas, apresentando uma questão relativa ao fundamento moral versus a cultura e prática organizacional, refletindo na maneira pela qual a diversidade é entendida e respondida na prática – normalmente negligenciada e ausente.
Cunningham (2019) defende a importância de incentivos estruturais e políticos, como pontapé inicial para outras ações. Após a criação de algumas políticas específicas, vários órgãos esportivos nacionais da Austrália adotaram legislação de antidiscriminação e políticas de igualdade de oportunidades para criar ambientes esportivos mais inclusivos.
Além disso, os artigos destacam a importância da utilização das redes sociais como forma de manifestação e aumento da visibilidade no âmbito do esporte. Como exemplo a #Gaysnãomerecemmedalhas teve bastante repercussão nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, considerado até então como os “Jogos mais gay da história”. A hashtag, inicialmente incitando declarações homofóbicas, foi compartilhada mais de 14 mil vezes no Twitter no dia 11 de agosto de 2016, em meio à crescente visibilidade de atletas lésbicas, gays, transexuais e travestis (LGBTs) no Rio 2016, como forma de protesto e de reação à menção realizada.
No que tange à comunicação e imagem, em estudo realizado por Cunningham e Melton (2014), com o objetivo de examinar a influência da publicidade na intenção de consumidores de ingressar em um clube de fitness, identificaram que: para os homens heterossexuais jovens, as formas de comunicação e publicidade dos clubes não interferem no seu interesse pela prática. Para todos os outros grupos analisados (mulheres, lésbicas, gays) foram encontradas relações entre as formas de comunicação e a intenção de ingressar nas atividades ofertadas pelo clube. Ou seja, a gestão de clubes esportivos deve começar a pensar o fenômeno esporte de uma forma mais “ampla”, compreendendo as demandas dos diversos grupos existentes.
A literatura científica brasileira – ainda bastante incipiente – mas já apresentando contribuições importantes nesta reflexão expõe alguns destaques importantes como: evidências sobre preconceito estrutural existente no Brasil, com importantes reflexos no acesso às praticas esportivas; importância da realização dos eventos específicos para o público LGBT como espaço de convivência e aceitação da diversidade; compreensão sobre o sujeito LGBT como um ator político e ativo nas questões da sociedade contemporânea; ausência de ações políticas e legislações específicas. Alguns dos autores que expõem estas discussões são os professores Wagner Xavier de Camargo (UFSCar), Vagner Matias do Prado (UFU), Silvana Vilodre Goellner (UFRGS), Luiza Aguiar dos Anjos (IFMG), entre outros.
Então, na prática, para quem nós (realmente) pensamos o fenômeno esporte, considerando que no Brasil há um notório preconceito estrutural, ausência de políticas públicas e um distanciamento da produção científica da diversidade com as temáticas da gestão do esporte?
Alguns dados do cenário esportivo “mainstream” demostram esta realidade. Nos levantamentos epidemiológicos realizados recentemente, como, a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios – Práticas de esportes e atividades físicas (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas não transmissíveis do Ministério da Saúde (VIGITEL) e a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PENSE), também do IBGE, demostram que a prática esportiva no Brasil, a se iniciar na escola, e posteriormente como práticas competitivas e de lazer, se concentram para grupos privilegiados, como: brancos, jovens, com alta escolaridade e maiores rendas.
Quando a análise se torna um pouco mais específica, os dados são ainda mais preocupantes. O GGB – Grupo Gay da Bahia destaca a ausência de dados epidemiológicos que indiquem os determinantes para a prática esportiva da população LBTG, e ainda reforça que, em 2017, a cada 20 horas uma pessoa morreu por motivação homotransfóbica. Além disso, vale colocar em pauta brevemente que o Brasil é o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos homofóbicos, concentrando 44% do total de execuções de todo o planeta, isto é, torna-se evidente a negligência da sociedade em geral e consequentemente, também da gestão do esporte, para este grupo.
Para Camargo (2018) a questão é, sobretudo, de gênero. Homens e mulheres não são tratados da mesma maneira (e pelas mesmas lógicas) no universo esportivo, que muitas vezes mantém prerrogativas machistas e sexistas, evidenciando assim, a importância de se compreender o processo de legitimação de diferentes grupos, a partir gestão do esporte.
Para atender a esta demanda, algumas iniciativas em âmbito nacional e internacional foram criadas, no sentido de ocupação de espaços e de desafiar os órgãos esportivos, mídia e governos a criar mais oportunidades para os atletas, independentemente de sexo, idade e/ou habilidade, e também, como espaços de celebração da diversidade sexual, a saber: o Gay Games (organizado pela Federation of Gay Games - FGG), o World OutGames (organizado pela Gay and Lesbian Sport Association - GLISA). Estes eventos surgiram com a pretensão de dar visibilidade e ação para atletas e outros sujeitos excluídos do cenário esportivo mainstream.
Laudares et al. (2019), ao realizar uma análise sobre a participação no Brasil nos Gay Games, destacou que, apesar de tímida durante os últimos anos, em 2018 houve a maior participação do Brasil, com 65 atletas, em 10 modalidades: Atletismo, Ciclismo, Corrida, Esgrima, Futebol masculino e feminino, Maratona, Natação, Remo, Tênis, Vôlei, conquistando 9 medalhas de ouro, 11 de prata e 4 de bronze. Além da participação esportiva, a delegação brasileira, por meio de estratégias midiáticas e utilização de Hashtags (#GayGames, #EspiritoBrasil, #Diversidade, #Inclusão, #AllEqual, #LutaContraAHomofobia) trouxerem visibilidade da causa, atraindo a atenção para o assunto.
Mas, apesar de toda esta argumentação, há a necessidade de criação destas “bolhas coloridas”? Para Cunningham (2019) e Tavares (2019), o surgimento de novos lugares de resistências e existências são extremamente importantes neste momento, pois, trazem a ideia de diferentes espaços físicos que se assemelham com os espaços normativos, porém se afastando dos conceitos errôneos de que a sexualidade e o gênero dissidente influenciam negativamente o desempenho físico e sua capacidade de participação ativa na sociedade – e no esporte.
Neste sentido, torna-se necessária a apresentação de alguns exemplos da realidade brasileira para que possamos entender a demanda que surge por meio da prática do esporte e da ocupação de espaços – “negados”. A saber: O estudo realizado pela Luiza Aguiar dos Anjos, apresentando a história da Torcida Coligay do time gremista, criada nos anos 70 (ANJOS, 2018); a realização da Champions Ligay (organizada pela LGNF - LiGay Nacional de Futebol), criada aos moldes de outras ligas internacionais, voltadas para a comunidade LGBT; a criação do MBB - Meninos Bons de Bola – 1° time formado por transgêneros – representativos nos espaços de visibilidade trans. Para além do futebol jogado por homens e a ocupação de espaços, é possível citar a criação do coletivo “Jogue como uma garota” da cidade de São Paulo-SP e o Sport Club PampaCats, criado em agosto de 2017 que conta com 300 integrantes em cinco modalidades: voleibol, futebol masculino, futebol feminino, handebol e corrida.
Contudo, por mais que todo este movimento seja emblemático e inovador, no mundo e no Brasil, muitos ainda são os questionamentos: por que estes eventos e iniciativas não são conhecidos pelo grande público? Por que são pouquíssimos mencionados nos veículos de comunicação convencionais (canais de tv, grandes jornais e afins)? Por que há pouca atenção da gestão de clubes, escolinhas, universidades, programas governamentais etc.? Por que as ações são concentradas nas regiões sul e sudeste? Por que há a ausência de iniciativas específicas para mulheres, lésbicas, trans, não-binários, tanto no âmbito do esporte, da saúde e do lazer? Como discutir um panorama esportivo inclusivo, considerando que a gestão do esporte é pensada, quase que exclusivamente, por homens?
A partir de todos estes apontamentos, sugerimos a reflexão de alguns desafios futuros, como: um olhar mais atento dos órgãos governamentais no planejamento de ações específicas, regulamentação e fiscalização; realização de ações efetivas e abertura de espaços em clubes, escolas, academias, confederações, Sistema S e ONGs e aproximação da produção científica da gestão do esporte com a temática da diversidade. Assim, devemos entender o esporte “como” um fenômeno social multifacetado, compreender as demandas dos diferentes públicos (“para quem”) e a urgente apropriação do espaço da gestão do esporte por grupos não hegemônicos, contribuindo para o “quem pensa” o esporte.
Referências
ANJOS, Luiza Aguiar dos. De ‘são bichas, mas são nossas’ à ‘diversidade da alegria’ – uma história da torcida Coligay. Tese (doutorado) Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018.
CAMARGO, Wagner Xavier. Esporte, Cultura e Política: a trajetória dos Gay Games nas práticas esportivas contemporâneas. Revista USP, v. 1, p. 97-114, 2016.
CAMARGO, Wagner Xavier de. O armário da sexualidade no mundo esportivo. Revista Estudos Feministas, v. 26, p. 01/e42816-18, 2018.
CUNNINGHAM, G. B. Diversity and inclusion in sport organizations: A multilevel perspective (4th ed.). New York, NY: Routledge, 2019.
CUNNINGHAM, G. B.; MELTON, E. N. Signals and cues: LGBT inclusive advertising and consumer attraction. Sport Marketing Quarterly, v. 23, p.37-46, 2014.
GOELLNER, Silvana Vilodre; SILVA, Paula; BOTELHO-GOMES, Paula. A sub-representação do futebol praticado por mulheres no jornalismo esportivo de Portugal: um estudo sobre a Algarve Women´s Football Cup. Movimento (UFRGS. Impresso), v. 19, p. 171-189, 2013.
LAUDARES, R. S; TAVARES, G. H.; SCHWARTZ, G. M. Legado da diversidade: a delegação brasileira LGBT marcando presença no megaevento Gay Games 2018. Anais... 10. Congresso Brasileiro de Gestão do Esporte. Associação Brasileira de Gestão do Esporte (ABRAGESP), 2019.
TAVARES, G. H. Diversidade na Gestão do Esporte. Palestra realizada no 10 Congresso Brasileiro de Gestão do Esporte, Associação Brasileira de Gestão do Esporte (ABRAGESP), 2019.
Prof. Dra. Giselle Helena Tavares
Docente efetiva do curso de Educação Física da FAEFI- UFU - Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da Universidade Federal de Uberlândia
Coordenadora do LEL - Laboratório de Estudos do Lazer - UNESP-RC
Coordenadora do GPELS - Grupo de Pesquisa e Estudos sobre Gestão do Esporte, Saúde e Lazer
Vice-Presidente da ABRAGESP - Associação Brasileira de Gestão do Esporte
Acredito que essa condição pré-estabelecida pela sociedade, como a regra a ser seguida, leva os atletas que não são héteros a não se declararem homossexuais em função das reprimendas, principalmente de ordem mercadológica e de relacionamento dentro dos vestiários, que os mesmos podem sofrer. Essa situação é observada nos esportes mainstream, como por exemplo, o basquete da NBA e o circuito da ATP de tênis. Na NBA, apenas um atleta se apresentou como homossexual até o presente momento, Jason Collins, que se manifestou já na fase final de sua carreira, ou seja, quando já havia equacionado os seus objetivos financeiros e esportivos. O caso da ATP é ainda mais crasso, dado que não houve qualquer manifestação dessa natureza.
O fato…